Em maio, o Município de Santa Comba Dão, através do Arquivo Municipal divulga um dos dois livros existentes em arquivo com registos e autos de mulheres grávidas não casadas do concelho de Santa Comba Dão entre 1864 e 1927 - a "Matrícula das Mulheres Grávidas". Trata-se de um documento , que reflete uma prática comum, a partir da 2ª metade do século XIX: a intimação de mulheres grávidas solteiras.
Esta medida tinha como objetivos acabar com os infanticídios, diminuir o número de crianças expostas e reduzir as despesas das autoridades administrativas municipais.
ENQUADRAMENTO
A Roda dos expostos, criada com o objetivo de prestar assistência às crianças abandonadas e de combater o infanticídio, rapidamente se revela um mecanismo ineficaz: a administração, que inicialmente também competia às Misericórdias, passa, a partir da terceira década do século XIX, a ser da inteira responsabilidade das autoridades administrativas municipais que, muito dificilmente, suportam as elevadas despesas; o número de amas para cuidar das crianças não é suficiente; a mortalidade é cada vez mais elevada; o hábito de abandonar crianças, sendo permitido por lei, acentua-se. Para tentar resolver o problema, foram propostas três medidas, em 1862: substituir as Rodas concelhias de admissão anónima por Hospícios distritais de admissão vigiada e restrita (o decreto que extinguiu as Rodas, publicado em 1867, foi revogado no ano seguinte. As reformas que estabeleceu foram aplicadas aos poucos, tendo o processo de supressão das Rodas sido gradual); atribuir subsídios de lactação a mães pobres,
eventualmente alargados a famílias pobres; intimar mulheres grávidas solteiras a declararem a gravidez.
Com efeito, a prática de intimar as mulheres grávidas solteiras (ou viúvas, ou casadas mas com o marido ausente) torna-se corrente na 2ª metade do século XIX, prática essa que tinha como principais objetivos acabar com os infanticídios, diminuir o número de expostos e, bastante importante para as autoridades administrativas que a adotavam, reduzir despesas. Se, por um lado, tal medida foi eficaz em termos de redução do número de infanticídios e de abandono de crianças, por outro revelou ser uma prática controladora, se não mesmo repressora, em relação às mulheres. Era referido, nos documentos oficiais e legislação, que as intimações deveriam ser feitas às mulheres grávidas solteiras não recatadas, isto é, àquelas que não podiam ficar em casa mas que eram vistas em público por terem que sair à rua para trabalharem. As que possuíssem meios e tivessem a possibilidade de ficar escondidas entre as paredes de suas casas, ou seja, aquelas que mais facilmente poderiam cometer infanticídio ou abandonar os filhos, não eram as visadas. A partir de julho de 1864, em conformidade com a circular do Governo Civil de Viseu
atada de junho do mesmo ano, a Administração do Concelho de Santa Comba Dão procedeu à matrícula de todas as mulheres solteiras que apparecerem gravidas neste Conselho, e que forem intimadas em forma para darem opportunamente conta do feto.
No Arquivo Municipal há dois livros, do fundo da Administração do Concelho, elaborados para o efeito. O primeiro, Matrícula das mulheres grávidas, com datas entre 1864 e 1869, contém os registos de 117 mulheres intimadas no nosso concelho. Nele constam as seguintes informações: o nome da mulher intimada, a filiação e residência, por quem foram intimadas (regra geral pelo regedor, ou o seu secretário, da freguesia onde residiam), a data da intimação e a época provável do nascimento. O segundo livro, Autos de gravidez das mulheres não casadas residentes neste concelho, de 1893 a 1927, contém os autos de 64 intimações.
Antes de os autos serem assinados na Administração do Concelho, o procedimento era o seguinte: o administrador do concelho enviava um mandado pelo oficial de diligências à mulher que se soubesse estar grávida; no verso desse mandado era passada uma certidão onde o oficial afirmava ter intimado a mulher, a qual tinha um dia para se apresentar na administração do concelho e assinar o auto. Nos autos de gravidez consta o nome, a filiação, o local de residência e o estado civil; é referido se está grávida e de quanto tempo; a mulher é avisada de que não pode sair da área de residência (se o tiver que fazer, deve informar a administração ou o regedor da freguesia) e de que deve apresentar a criança na administração. Das 64 mulheres intimadas, apenas três assinaram os autos, as outras não o fizeram por não saberem escrever. Sete mulheres declararam não estarem grávidas: declarou que não andava grávida e que nem para tal tinha dado motivos; nega em absoluto andar grávida e por isso nada mais tem a declarar (lê-se em autos de 1899). Nestes casos, o administrador lembrava-lhes as penas em que poderiam incorrer caso se verificasse o contrário.
Este sistema de intimação pode ter contribuído para a diminuição do número de exposições e infanticídios. Contudo, estas mulheres viram as suas vidas devassadas e expostas ao público pois por mais discrição que se pudesse ter, em meios pequenos como o concelho de Santa Comba Dão, as deslocações que se impunham acabavam por ser do conhecimento geral, quando não era a própria vizinhança a fazer a denúncia, como se pode inferir de um auto de 1895: (...) a qual sendo interrogada a cerca do seu estado de gravidez, ella declarou que não sabia por não sentir cousa alguma por emquanto; em todo o caso, e em vista de ser do dominio publico a noticia de que a autuada anda gravida, elle administrador a intimou a que não saisse para fora d'esta vila (...)
Aceda ao documento do mês de maio, no qual é divulgado um dos dois livros existentes em arquivo, com registos e autos de mulheres grávidas não casadas do concelho de Santa Comba Dão, entre 1864 e 1927: